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Quando jogos também são arte


O que é uma obra de arte?


Dick Higgins, o crítico de arte que
comprou um computador
Essa pergunta, que há tanto tempo vem tirando o sono de artistas, críticos e tanta gente que não tem uma louça pra lavar apreciadores em geral ao longo dos séculos, se torna ainda mais pertinente em nossos dias atuais, onde tantas formas de mídia podem ser usadas para fins artísticos. Não só as inovações tecnológicas do século XX permitiram o surgimento de novos meios de mídia, como o cinema e a televisão, mas também possibilitaram que se surgissem obras que quebrassem as antigas barreiras do meio, e começaram a utilizar mais de uma mídia em sua composição. Essas novas obras, que não podiam ser encaixadas em um único grupo previamente definido, passaram a ser chamadas de intermedia ("intermídia" na tradução para o português) , termo criado pelo poeta inglês Dick Higgins. Segundo ele, “quando dois ou mais meios discretos se fundem conceitualmente, eles se tornam intermedia. Diferem de meios mistos, sendo inseparáveis na essência de obra de arte”. Criando esse conceito a partir do advento do happening (onde pintores dos Estados Unidos e da Alemanha começaram a inserir pessoas nos seus trabalhos de colagem) do final dos anos 1950 e começo dos 1960, onde a introdução de uma pessoa naquela bagunça toda fazia com que a obra não pudesse ser claramente definida apenas como arte plástica. Além de reconhecer a existência dessa intermídia no teatro e nas artes visuais das décadas de 50 e 60, Higgins encontrou também paralelos do happening no trabalho do compositor John Cage (1912-1992), que explorava a intermídia entre música e filosofia, e nos poemas construtivistas de Emmet Williams (1925-2007). Com isso, logo os experimentos em poesia sonora e concreta, ambos recentes no período, foram classificados como intermídia. Vale-se dizer que Higgins nunca gostou de termos como “poesia digital” ou “poesia numérica”, pois esses termos costumam classificar as novas criações apenas superficialmente, geralmente baseados no  suporte da obra, sem levar em conta a significação.

A partir da década de 1980, quase todas essas experimentações convergiram para o uso do computador e suas inúmeras ferramentas de suporte. Microsoft Excel, Power Point, Macromedia Flash, Adobe Reader, Microsoft DOS, e tantas outros softwares velhos, toscos e que nos dão raiva quando precisamos usá-los pra qualquer coisa já foram utilizados para a criação de uma arte intermídia, no intuito de criarem-se poemas, prosas ou quadros, utilizando-se de um suporte que permite a fácil visualização em qualquer parte do mundo e, até mesmo, a possibilidade de interação com a obra. São inúmeras as ferramentas proporcionadas pelos computadores, e ainda maiores as formas de uso delas para se fazer arte; a cada dia novos artistas surgem com novas abordagens, obras que se tornam quase tão complexas quanto o próprio funcionamento dos microchips só que não.

Se você não sabe que jogo é esse, por favor, se mata

Mas a década de 1980 não marcou apenas o nascimento da pessoa mais sexy do mundo: eu surgimento dos computadores pessoais. Paralelamente, tivemos nela também o surgimento de uma nova e lucrativa indústria: a dos videogames. Desde a popularização do Atari 2600, os games vem passando por um contínuo processo de aprimoramento, seja na parte gráfica, de jogabilidade ou de enredo. De jogos como “Futebol”, “Tênis” e “Pong”, que eu não vou explicar aqui como que era que vocês já deve estar cansados de saber das barrinhas e da bolinha, até jogos bem mais recentes, como “Assassin's Creed”, que em seu roteiro mistura ficção-científica com a história real das cruzadas, e possui gráficos tão bons quanto qualquer animação cinematográfica de primeira linha. Como podemos notar, a indústria dos games percorreu um longo caminho em todas suas etapas de desenvolvimento.

De Pong à Assassin's Creed, podemos perceber que a evolução foi quase nula


Não apenas na parte gráfica, pois isso depende muito das inovações tecnológicas de cada época, mas a parte de enredo dos jogos é algo que chama a atenção. Visando atender um público cada vez mais exigente, os enredos passaram por uma nítida evolução em sua produção, deixando de serem simples pretextos para que os personagens se digladiassem até a morte, passando a assumir uma certa ordem de protagonismo, sendo muitas vezes um dos grandes responsáveis pela boa aceitação do jogo no mercado, ou mesmo em como ele será classificado pelas revistas e sites especializados como o Comando Login. E isso faz com que, muitas vezes, os jogos se aproximem de um estado de arte.

É esse o caso de um dos últimos trabalhos da Lionhead Studios, o famigerado Fable III.


Fable III?!



Último lançamento da Lionhead Studios, Fable III é o que poderíamos chamar de RPG/Ação, jogo onde suas batalhas ocorrem em tempo real, bem diferente dos RPGs orientais tradicionais, cujas batalhas obedecem um sistema de menu de turnos. Mas não são as batalhas aquilo que mais nos interessa neste artigo, e sim a história.

O jogo se passa no reino de Albion, mesmo local dos dois primeiros títulos da série, e acontece cinquenta anos depois do segundo jogo da franquia. O reino passa por grandes mudanças: em meio a uma recente Revolução Industrial, seus moradores se veem explorados por Raven, um impiedoso chefe das fábricas, que é Logan, irmão do personagem principal e rei tirano, que explora a população com altos impostos. Sensível à miséria do povo, o personagem, conhecido apenas como The Prince (O Príncipe), resolve trair seu irmão e aplicar um golpe de estado, chamando a população para lutar ao seu lado e derrubar de vez a tirania de Logan. Mas, apenas quando consegue tomar o trono para si, descobrimos que havia um motivo por detrás de todo aquele abuso: um grande mal chamado “Crawler, Ruler of Darkness” (algo como Crawler, o Mestre das Trevas) deseja acabar com toda a vida de Albion, e uma decisão moral nos é proposta: ser um rei benevolente e correr o risco de ter sua população aniquilada, ou ser um tirano e continuar explorando o povo, afim de conseguir fundos para financiar um exército forte o suficiente para enfrentar essa ameaça e salvar o reino?

Mas esse clima pesado, de dúvida e moralidade, não é o que toma conta do jogo. Há um grande ar de comédia nele. Uma comédia seca, irônica, às vezes até nonsense, típico do humor inglês. Esse ar cômico pode ser visto desde a sequência de abertura, perdurando-se durante todo o decorrer do jogo.

Jaime Lannister, é você?

A sequência de abertura de Fable III é, talvez, além de uma das mais engraçadas da história dos games, uma das mais poéticas. Utilizando-se do recurso de sobreposição de temas, enquanto um narrador nos apresenta um discurso de naipe revolucionário de cunho marxista, as imagens, sincronizadas com o discurso, nos mostram a saga de uma galinha que tenta fugir de seu destino como almoço. O vídeo logo de cara nos remonta à cena inicial do filme O Sentido da Vida, do grupo de humor britânico Mounty Python, onde velhos piratas ingleses navegam pelo mar dos investimentos internacionais. Paralelo esse que talvez tenha sido proposital, já que o ator e humorista John Cleese (um dos fundadores da trupe de humor britânica) participou do projeto, cedendo a voz a um dos personagens.

(Caso não apareça de primeira, é só clicar no botão que parece uma cartinha pra ativar as legendas)


Mas e o Kiko?



A sequência de abertura de Fable III nos apresenta um bom exemplo de intermídia: navegando entre o discurso filosófico, o humor irônico e o aspecto visual compatível com as tecnologias de ponta, ela tenciona mostrar como um trabalho, que não é puramente visual (já que apenas a sequência de imagens não teria qualquer efeito sobre o jogador), puramente filosófica (já que apenas o discurso marxista não teria muito nexo no decorrer do jogo) e nem puramente cômica (já que é a sobreposição das imagens sobre o discurso que dá o caráter cômico, sem perder a força das palavras ditas), mas, sim, que transita entre esses três aspectos, e depende de que todos eles estejam presentes para fazer sentido. E isso nos fornece uma sequência cujas palavras ecoam em nossas cabeças quando a terminamos de assistir, deixando-nos um sentimento de que algo grandioso nos aguarda no decorrer do jogo. Ou, pelo menos, é isso que começamos a achar assim que conseguimos parar de rir.

Porque uma privada pode ser arte, no sentido Andy Warhol da palavra. Uma caixinha de chicletes pode ser arte, no sentido Philadelpho Menezes da palavra. Arames farpados podem ser arte, no sentido Avelino de Araújo da palavra. O uso de palavras e a inversão de sua letras sobre uma trilha sonora improvisada pode ser arte, no sentido Melo e Castro da palavra.

A sequência de abertura de Fable III também pode ser arte.

No sentido Monty Phyton da palavra.


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